07/05/2010
“Pai, fostes cavaleiro hoje a vigília é nossa …”
Fernando Pessoa (sobre Afonso H.)
António Ramalho Eanes |
O livro foi editado pela Liga dos Combatentes e apresentado pelo General Ramalho Eanes (RE).
Devo começar por dizer que conheço o General RE desde o tempo em que era cadete aluno na Academia Militar, (1971/2) e tenho por ele a maior estima e consideração.
Creio ser considerado por todos com um bom militar, que se bateu com pundunor nos teatros de operações ultramarinos, nada se sabendo que obste a considerá-lo um homem íntegro, sério e leal aos seus compromissos e amizades.
E mais até, do que considerar a sua prestação como PR, devemos estar-lhe grato pelos exemplos de cidadania que deu ao País, no sentido em que nunca quis quaisquer honras ou prebendas para si ou os seus, e no gesto de recusar os retroactivos de remunerações com que, tarde e a más horas, lhe quiseram ofertar.
De tal modo este último exemplo sai fora do comum, na actual vivência político/social, que o gesto foi convenientemente ocultado…
No que toca, porém, à apreciação dos factos, intenções e políticas seguidas, relativamente ao que se passou no Estado Português da Índia, entre 1947 e 1961, feita por RE na apresentação do livro, vejo-me na contingência de discordar do que disse, sobretudo do fundo do que disse.
É neste âmbito, pois (interpretação, história, política e estratégia), que a minha escrita deve ser entendida. Passe a impertinência do pupilo face ao antigo mestre…
Lembremos, muito resumidamente, o que se passou na Índia: os portugueses estabeleceram bases permanentes na península industânica e governo próprio, desde que Afonso de Albuquerque conquistou Goa, em 1510.
Vicissitudes históricas de séculos, fizeram “variar” os territórios portugueses, até que as fronteiras dos mesmos estabilizaram por meados do século XVIII, estabelecendo-se acordos com a Inglaterra, potência que passou a dominar os territórios contíguos.
Consolidou-se uma cultura própria indo-portuguesa, distinta de tudo o mais, chegando-se ao fim da II GM em harmonia vivencial. Os territórios que restavam eram Goa, Damão e Diu e os enclaves de Dadrá e Nagar Aveli, que tinham a categoria de “Estado”, desde o século XVII. Eram menos de 4000 Km2 e habitados por cerca de 600.000 almas.
Em 1947 a GB decidiu dar a independência aos territórios que admnistrava, que de imediato se dividiram em União Indiana (UI), Paquistão e Sri Lanka. Até hoje contam-se três guerras e uma tensão bélica constante, entre os dois primeiros.
O 1º Presidente da UI, o Pandita Nerhu, logo após a independência resolveu reivindicar os territórios portugueses (onde estávamos há 450 anos) para a soberania do seu nóvel país, não havendo um único argumento sério que sustentasse tal despautério.
O governo português recusou alinhar no esbulho. As relações diplomáticas foram cortadas, em 1955, por iniciativa da UI.
Daí até 1961 a ofensiva da UI pode ser dividida em quatro fases: a primeira, com início em 1947, dura até ao ataque a Dadrá e Nagar Aveli, em 1954. É a fase da persuasão e pressão política para negociar a entrega; a segunda fase cobre a reacção indiana às tentativas de recuperação dos enclaves por parte de Portugal.
A estas diligências responde Nova Deli com violações de fronteira, subversão interna, propaganda, guerra de nervos e agitação internacional, bloqueio, perseguição às comunidades goesas na UI, etc; a terceira fase é a do debate internacional que se prolonga de 1955 a 1960,acabando o Tribunal Internacional da Haia,para quem Lisboa apelou, por dar razão a Portugal. Portugal ultrapassou e venceu estas três fases.
Vendo frustradas todas as suas maquinações, o governo indiano – que se reclamava, aliás, de pacifista – optou pela única forma que lhe restava, isto é, a agressão militar. E foi isso que fez na madrugada do dia 18 de Dezembro de 1961. Utilizou cerca de 45000 homens, com artilharia e blindados, toda a sorte de aeronaves e uma forte esquadra.
As forças portuguesas (cerca de 3500 homens) estavam muito debilitados, sob todos os pontos de vista, ofereceram pouca resistência e renderam-se em pouco mais de 24 horas. O cobarde ataque foi condenado pelo Conselho de Segurança da ONU, mas a URSS opôs o seu veto. Portugal foi abandonado pela maioria dos que se diziam seus aliados.
O governo português (até 1974) nunca reconheceu de jure (e bem!) a invasão e ocupação – que nem sequer teve a decência de uma declaração de guerra prévia – mantendo sempre a luta pelos direitos que assistiam a Portugal e sempre em termos de grande dignidade. Tudo isto são factos indesmentíveis.
O Sr. General RE, porém, não parece ter a mesma leitura, nem retira as mesmas conclusões.
De facto, o seu discurso – bem elaborado e dito – é desequilibrado no conteúdo e está cheio de contradições. As conclusões e as mensagens têm que reflectir tudo isso.
O fulcro da sua intervenção resume-se numa frase: “a queda de Goa foi uma questão nefasta”. É certo, a dificuldade reside no desenvolvimento da ideia.
Começou por indicar Nerhu e Salazar como os principais responsáveis. Ao primeiro destinou, porém, duas ou três frases, ao segundo três páginas…
Aparentemente, Nerhu não devia ter invadido o território, o que se explica por se ter desviado do princípio da autodeterminação (que nem sequer era claro naquela época …), e .. disse! Nem sequer ficámos a saber qual a sua opinião sobre a justiça e o direito do(s) procedimento(s)…
Mas quanto a Salazar foi pródigo nas críticas, começando por dizer esta coisa espantosa: que o estadista português (estadista é palavra nossa) tinha perdido uma oportunidade soberana de a partir de 1945 ter constituído um novo “Brasil” no Oriente! Dizer isto em 2010, corresponde a considerar RE um visionário retroactivo! Desculpará o Sr. General mas a sua idade e longa experiência, já não são compatíveis com ingenuidades.
Há muito que se estuda em todas as universidades (talvez com a excepção da do Dr. Rosas), que o que aconteceu após a II GM tem a ver directamente com a Guerra Fria e que o que estava em causa verdadeiramente, era a substituição de soberanias e não a autodeterminação dos povos. E mesmo que esta ideia aparentemente filantrópica colhesse apoios, que probabilidade é que Goa, Damão e Diu tinham em termos geo políticos, de passar a ser um novo “Brasil”, no Oriente? E, posteriormente, Nerhu não declarou no parlamento indiano, que nunca admitiria um estado da India independente nem toleraria a presença portuguesa mesmo que os goeses o quissessem?. E não se opôs a um referendo? Como entende o Sr. General que se pudesse constituir um novo “Brasil” nestas circunstâncias?
Por outro lado, como se pode negociar com uma potência cuja única coisa que aceita negociar é a transferência imediata da soberania? E a que título é que o governo português poderia concordar com tal? Ou o Senhor General entende que se deve entregar o ouro ao bandido, sem se esboçar qualquer tipo de resistência? E devemos também ficar contentes com isso?
E já que é tão crítico da atitude do governo português,diga-me, alguém fez melhor? Isto é, a política seguida pela Inglaterra, pela França e pela Holanda, por ex., que colonizaram, melhor dizendo, exerciam ou exerceram colonialismo, no Industão, acaso obtiveram melhores resultados do que nós?
RE diz uma coisa de Salazar e o seu contrário e sobretudo pretendeu entender-lhe intenções ou “maquiavelismos”, que julgo não terem razão alguma de ser. É um facto de que a nível militar se cometeram muitos erros e foi irrealista fixar o prazo de oito dias de resistência para que nesse tempo se pudessem mobilizar as instâncias políticas e diplomáticas.
Mas ao contrário do que RE sugere, tenho as mais sérias dúvidas que Salazar tivesse sido informado do real estado das tropas. É certo que ele era o ministro da Defesa – por razão do golpe Botelho Moniz e da situação em Angola – mas é incorrecto atribuir-lhe a responsabilidade directa da situação das mesmas. De facto que culpa se pode atribuir a Salazar da maioria das munições estarem fora de prazo e estragadas? Ou que as tropas estivessem desmoralizadas? Que foi feito da hierarquia e da acção de comando? Não haver defesa civil no território também era culpa do Presidente do Conselho?
É certo que Salazar queria diminuir os gastos anuais com a defesa, mas alguém além de Santos Costa o contrariou? E a ideia de reduzir as tropas ainda mais, em 1960, não foi proposta de Costa Gomes, então Subsecretário de Estado do Exército? A mente carteziana do general (formou-se em matemática com 18 valores) raciocinou em conformidade: podendo a UI multiplicar arbitrariamente o número de tropas e equipamento que nós lá colocassemos, de que serviria estarmos a consumir as reservas que nos podiam vir a fazer falta (como fizeram!), em África?
É certo que para se pedir a uma força militar que se bata com dignidade é necessário dar-lhe um mínimo de meios, mas as razões porque tal não se passou são um bom tema para um futuro grupo de trabalho que faça a análise de tudo o que se passou, à semelhança do que se tem feito para Angola, Guiné e Moçambique.
O que me parece é que, até ser demasiado tarde, ninguém acreditou, ou quis acreditar, que a invasão se daria…
Deste modo, parece muito desajustado na prédica do General RE, que o fautor das pérfidas reivindicações e do escabroso ataque, não seja condenado sem hesitações, pois não tem razão alguma em tudo o que fez; ao contrário de Salazar que sai invectivado de tudo e mais alguma coisa, quando apenas se limitou a cumprir o seu dever de salvaguardar as terras e as gentes que viviam debaixo da bandeira das quinas e que durante cerca de 14 anos (não foram 14 dias) conseguiu resistir e frustrar, vitoriosamente, todas as malfeitorias indianas.
O antigo Presidente do Conselho pode ser criticado por métodos que tenha utilizado, decisões que tenha tomado, opções que tenha feito. Isso pode. Agora atacá-lo por se ter decidido à defesa do património da Nação, julgo ser um erro de análise grave.
Outra contradição insanável tem a ver com o elogio que RE fez (como muitos outros) aos militares portugueses que lutaram e morreram, sobretudo aos que praticaram actos de valor e heroísmo. Neste âmbito RE até se emocionou. Ora não se pode elogiar estes e, ao mesmo tempo, tal não implicar uma crítica para quem não lhe seguiu o exemplo. Quando, porém, se “desculpa” quem não cumpriu os seus deveres militares, está-se automaticamente a chamar “idiotas” a quem decidiu vender cara a pele…
De facto os militares portugueses, naquela circunstância, não necessitavam de lutar até ao último homem, mas deviam cumprir o que estava prescrito na Carta de Comando, que mandava lutar até ao esgotamento dos víveres e munições. Os “deveres” políticos, diplomáticos, militares, etc., devem ser cumpridos independentemente uns dos outros, isto é, o não cumprimento de uns (a acontecer) não implica automaticamente o não cumprimento dos outros.
Numa palavra, aconteça o que acontecer é necessário salvaguardar, “in extremis” a Honra da Bandeira, que é a Honra de todos nós. E não se pode sair disto, sob pena de não precisarmos de Exército para nada.
Quem é que RE escolheria para patronos dos futuros cursos das Academias Militares: Oliveira e Carmo ou Vassalo e Silva? Santiago de Carvalho, ou o Brigadeiro Leitão? E se fosse professor, que ensinaria aos cadetes sobre como se deveriam comportar como futuros oficiais? Que só devem lutar quando estão em superioridade? E que tipo de superioridade? Que não façam nada se não tiverem ordens superiores (como aconteceu por exemplo, em Timor, em 1975?); resolvem na altura com votação de braço no ar? O quê? Em que doutrina assentamos? Que teria feito RE quando foi chefe do Exército, se tivesse aparecido na fronteira do Caia, a Divisão Brunete, em ordem de batalha? (como quase aconteceu depois do desvario do saque à embaixada de Espanha, nos idos do PREC). Que ordens daria?
Porque não criticou a inacreditável atitude de Mário Soares, quando em Dezembro de 1974 e sem consultar ninguém, se comprometeu a reconhecer de “jure” a odiosa invasão de Goa, uma vez que se cruzou com o MNE indiano, numa reunião da ONU? Concorda com isso? E se concorda como encara o corte de relações com a Indonésia, uns meses depois, após este país ter invadido Timor Leste numa operação, muito menos gravosa do que a efectuada pela UI relativamente a Goa?
O livro, ora nos escaparates, tem textos e opiniões para todos os gostos e feitios. Mas a História que ficar escrita para o futuro não comporta tantas versões. E sobretudo não pode (deve) ser escrita por pessoas que, de algum modo, possuam algum capital de interesse ideológico, conveniência material, afectação de sentimentos pessoais, necessidade de branquear comportamentos próprios, de amigos, correligionários ou familiares ou qualquer outro estigma que possa adulterar a visão imparcial dos eventos e das intenções.
Um objectivo, todavia, virtualmente improvável de atingir em qualquer época ou local.
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